Ainda não: era basicamente isso que tinha dito a ela, que apesar de os dois estarem juntos, ele sentia que era cedo ainda para começar essa nova fase do relacionamento. Felizmente, ela compreendia. Também era algo novo para ela, e no final das contas nenhum dos dois estava cegamente confiante para dar um passo a frente. Talvez fosse mesmo melhor esperar, não por algo a acontecer, mas mais pelo bem-estar, pelo bem-sentir de ambos. E, o mais importante, ela o amava. Isso o deixava sempre muito feliz, independente da situação.
Tudo parecia bem pacífico. Leonardo voltou para casa, trancou a porta, incerto de sua decisão. Pôs no rádio um rock melódico, abriu a geladeira, puxou alguma coisa para comer. Não sentia muita fome, sua mente ainda estava naquela conversa. Talvez devesse voltar, mudar de ideia... não. Melhor seguir. Tecnicamente não havia decidido por nada - ou melhor, na verdade era exatamente isso: havia decidido por nada. Prefiro esperar um pouco, amor. Não estou tão seguro, não sei se ainda é hora. É bem possível que no futuro a gente acabe morando junto, casando, até, por que não. Mas no momento eu ainda me sinto meio inseguro. É isso. Ela também fora sincera - sentia-se pronta, mas se ele preferia esperar, ela podia fazê-lo, por ele.
Foi descendo as escadas que ele percebeu: de alguma forma, as paredes pareciam mais distantes do que o normal, assim como o chão. Não devia ser nada, pensou. De repente, a luz pisca. Não bem isso, era mais como um piscar de realidade - a pressão que o degrau exercia na pele de seu pé descalço também desaparecera por um instante. Tudo ficara escuro, de súbito, por uma fração de segundo. Chegou rápido ao andar inferior, por alguma razão ele se sentia mais seguro no porão que fora transformado em ateliê. Era reconfortante, mesmo frente a um delírio como tal. Eis que sua visão pisca de novo, e ele ouve um som como o de um enorme balão estourando, mas como se o ouvisse por dentro - um POP! bastante nítido, na medida do possível.
Naquela fração de segundo que sucede ao estampido, Leonardo percebe um vulto conhecido à sua frente, sentado, e é tomado pelo espanto - o vulto era o seu! Estaria dormindo? Morto? Em outra dimensão? Delirando? É, delírio parecia a resposta mais plausível. Não teve tempo suficiente para refletir sobre o assunto, pois, pelo visto, a outra pessoa também ouvira o estrondo, já que se virara rapidamente em seguida. O instante que se segue é de contemplação e reconhecimento: sim, aquele à sua frente era ele mesmo, e parecia real o suficiente para que ninguém duvidasse. O sujeito provavelmente havia pensado em falar com quem quer que houvesse causado aquele barulho, pois fizera um movimento vago com o braço. Todavia aquilo não parecia fazer muita diferença no momento, já que o olhar que trocavam era de mútua incredulidade. Simplesmente não podia ser possível.
- Você...? - disse a figura, como se esperasse alguma resposta sensata.
- ...é. - devolveu Leonardo, ainda de pé. Era o máximo que tinha de resposta pra situação.
- Como que você sou eu?
- Não sei. Certeza que a gente é o mesmo?
O rapaz levantou-se. Mesma altura, forma do rosto, cabelo, voz, aparência rigorosamente igual. Só diferiam nas roupas, mas apenas da mesma forma que uma pessoa difere de si mesma quando troca de roupa.
- De onde você veio?
- Eu estava em casa, desci aqui até o ateliê e vim parar aqui.
- Mas como? Eu teria visto você entrar. A porta está fechada, olha.
Olhou. Estava mesmo. Bom, se fosse delírio, talvez ele descobrisse logo. Apesar de desejar em seu íntimo que aquele fosse apenas outro sonho sem nexo do qual ele acordaria a qualquer momento, decidiu tratar objetivamente a questão.
- Onde estamos?
- Em casa, Rua Santos Gouveia, 683... o que estou falando, você deve ser apenas uma alucinação!
- Será então que só você consegue me ver?
- Talvez... - o telefone toca. - Atende você. Atende e passa pra mim, só pra ver se acontece alguma coisa.
Ele pondera por um instante, e pega o telefone. Nada além da normalidade passa pelo quarto, se é se pode falar em normalidade numa situação como tal.
- Alô.
- Alô! O Leo está?
- Sou eu.
- Ah, e aí rapaz!
- E aí! Só espera um pouco, é rápido.
Com a mão sobre o bocal do telefone, ele sussurra alguma coisa e seu sósia atende a ligação, mas desliga pouco tempo depois, tornando a se encarar.
- Você veio do futuro ou do passado, por acaso?
- Vou saber! Que dia é hoje?
- 20 de fevereiro. De 2009.
- Huuuum! Então eu vim mesmo do futuro. Onde eu tava era dia 22.
- Mas pelo jeito você não veio me passar nenhuma mensagem especial, veio?
- Não que eu saiba.
(um pequeno silêncio)
- Me conta o que você fez, nesses dois dias.
- Nada demais, sábado foi um dia normal, e hoje - ahm, no dia 22 eu fui na casa da Clarisse, e... ah, a gente conversou um pouco. Falei que prefiro esperar um pouco, que acho que é cedo... sabe, né.
- Sei. E o que ela falou? - o súbito aumento do interesse era notável em sua voz.
- Ela disse que tudo bem. Que se sente pronta, mas se eu preferir esperar, ela pode esperar também.
- Sério? Mas que estranho...
- O quê?
- Eu meio que já sabia tudo isso que você falou.
Ele não respondeu nada. Aquela conversa já estava além do que ele era capaz de inventar; agora, ser produto do pensamento de outra pessoa - ou melhor, do proprio pensamento, estava quase no limite do aceitável. Toda a sua memória, suas experiências vividas... será que alguma coisa teria realmente acontecido?
- Logo antes do barulho e de você aparecer, eu estava justamente pensando sobre isso - estava imaginando, que, se eu dissesse o que você falou pra ela, ela reagiria dessa forma. Na verdade, o que eu imaginei que ela responderia era mesmo algo bem próximo do que você falou. Agora já não tenho certeza que você veio mesmo do futuro. Você não saiu da minha mente, saiu?
- Já disse que não sei. Bom, se eu tiver saído da sua cabeça, eu saberia tudo o que você sabe, nem mais nem menos, certo?
- E no entanto você lembra de ter conversado com a Cla, num dia que eu ainda nem vivi. (- Sim.) - Do que mais você lembra? Você disse que amanhã vai ser, ou foi, um dia normal, o que você fez no sábado?
- Ah, foi um dia normal mesmo, não fiz nada demais, eu... fiquei em casa.
- Tem certeza?
- Agora que você me pergunta, sabe que eu realmente não lembro muito bem do que fiz? Mas pera aí. Se o que eu vivi era o que você estava imaginando, você deveria lembrar o que eu fiz ontem, não?
- Esse é o problema: eu não estava pensando sobre o que faria amanhã, mas sim o que falaria pra Cla quando a visse, domingo, no caso. E pelo jeito essa é a sua única memória.
- Isso e o que aconteceu depois. Fui pra casa, liguei o rádio, comi e desci aqui.
- Ok, essa parte eu não tinha imaginado. Eu só fiquei pensando na conversa que tive com ela.
- Então eu não sou só da sua mente! Não, para, é claro que não sou! Eu sou real, só não lembro o que fiz ontem! Tudo isso é muito esquisito. Calma... no instante em que eu apareci aqui, naquele momento mesmo, no que você estava pensando?
- Nisso que eu te disse. Se bem que na hora mesmo não sei se ainda estava pensando sobre isso. Eu acho que me distraí. Faz diferença?
- Bom, parece que você só imaginou a conversa até a parte que ela responde. Mesmo assim, eu continuei existindo depois de você parar de imaginar, isso supondo que eu seja mesmo imaginação sua.
- ...pelo jeito sim. E por mais difícil que já pareça, de alguma forma você saiu de onde quer que estava e veio parar aqui. O que você estava fazendo na hora H?
- Não sei! Eu desci as escadas, mas nem deu tempo de pensar muito a respeito, porque de repente a luz piscou e você estava aí! Ou eu estava aqui, não sei o que é pior.
Já estavam ultrapassando a linha do bom-senso. Ele se sentou, observado pelo seu gêmeo da antevéspera. Reconstruindo a situação: conversou com a namorada, chegou em casa, relaxou, desceu as escadas, e BUM, estava olhando para um clone seu, que dizia ter imaginado o que ele vivera naquele dia, mas não sabia dizer nada sobre as coisas de que ele também não tinha muita memória. Seria mesmo verdade? Será que ele era mesmo oriundo de sua própria hipótese sobre o que faria no final de semana? Não parecia muito convincente.
- Ô... Ô Leonardo.
- Oi.
- Se você estava imaginando a minha... o meu presente, ou melhor, o que aconteceu comigo agora há pouco, o que aconteceria se eu tivesse dito qualquer outra coisa a ela?
- É mesmo né. E se você dissesse algo completamente diferente?
Puseram-se a pensar. Se estivessem menos empenhados em franzir o cenho, fazer poses de quem realmente está tentando raciocinar e - de fato - se esforçar para extrair algo da massa cinzenta, teriam notado que o ar ao seu redor parecia menos nítido; a luz já não passava direito através dele, mas sim tomava caminhos um tanto sinuosos. De repente, POP! Ambos olham um para o outro, e, ao não notarem diferença entre si, olham para o quarto, que também parecia suficientemente normal, a não ser pelas duas figuras que ali se encontravam, um onde o Leonardo que se levantara estava originalmente sentado, próximo ao que se havia acabado de se sentar estava o outro. No rosto dos dois há novamente olhares incrédulos, ainda que diferindo um tanto de intensidade entre si. O último, então, surpreende a todos ao sair de seu quase-transe:
- Merda! Achei que fosse dar certo. Achei que se eu fizesse você - olha e aponta com a cabeça para o sujeito que aparecera com ele - imaginar o que aconteceria se eu dissesse outra coisa pra ela podíamos resolver essa situação. Mas pelo jeito fiquei tempo demais imaginando os efeitos de fazer você pensar isso.
Um tanto confusos, os xarás começam a discutir entre si. Não vem à tona nenhuma conclusão notável, já que ali na verdade era a mesma mente falando consigo mesma, numa conversa que só se mostraria útil ao revelar o que na verdade eles já sabiam, todo esse tempo. Contudo, autoconhecimento não era de muita importância naquela situação, ou ao menos não comparado à magnitude do estranhamento que o quadro gerava para os quatro. Depois de alguns minutos, e já sem duvidar tanto da possibilidade de ter sido expulso (duas vezes) de dentro de sua própria cabeça, Leonardo resolve refletir melhor acerca de tudo o que lhe ocorrera até então, mas, principalmente, do que ainda viria. E se ainda estivesse dentro da imaginação de alguém? Ou mesmo de si mesmo, de uma imagem sua exatamente no mesmo lugar, naquele exato canto do cômodo. Por outro lado, ele próprio já estava no papel do imaginador - pelo que sugeriam as circunstâncias, um momento maior de distração poderia muito bem causar mais um estouro estranho daqueles, e seu pensamento, seu sósia a imaginá-lo, deixaria de ser ficção sua, e passaria a compartilhar da realidade que até aquele momento era dele - ou das ideias de quem o estaria imaginando. Mas e se fosse o sujeito quem se distraísse no decorrer do processo? Quem iria primeiro parar aonde? Ele fitou o que poderia chamar de suas réplicas: apesar de tudo, sentia que ele era o único de verdade ali, se é que poderia falar assim. Os outros pareciam, só...
Naquele instante breve e virtual, ele percebeu que havia se distraído.
POP!
PS - Acabei de encontrar:
Significado de Tético
adj. Filosofia. Na terminologia fenomenológica, diz-se do que supõe a existência da consciência ou do que se afirma como ela.