quinta-feira, 8 de julho de 2010

[LUTO] - Morte e vida orkutiana


Já faz um tempo que eu quero escrever sobre a morte e como as pessoas lidam com ela, em especial no orkut, que é um bom lugar pra olhar as pessoas se comportando na internet - e como eu já cheguei a andar bastante por ali, acabei vendo uma ou outra coisa interessante. Não tenho tanto a falar, porque achei um artigo da intexto, uma revista da UFRGS, que fala do mesmo. Chama-se "Viver e Morrer no Orkut: os paradoxos da rematerialização do ciberespaço". Vale a pena ler, e dá pra baixar o pdf.

O artigo se propõe a discutir aspectos relativos à experiência da morte, tal como ela se apresenta no Orkut, site de relacionamentos que se tornou tremendamente popular entre os usuários brasileiros. O que a morte revela sobre a vida no ciberespaço? De que maneira o processo de luto se constrói em um ambiente em que o perfil sobrevive ao usuário? Em que medida a morte dos outros se constitui como uma ocasião para refletir sobre o próprio sentido da vida?

Não vou ficar aqui repetindo a opinião nem as conclusões do texto, e acabei descobrindo que esse assunto nem é tão novo assim, só fui mais um a se pôr a pensar nele. Apenas queria deixar notado também como esse ciberespaço facilita o luto, como fica mais fácil e cômodo lidar com o morto quando ele - ou, usando a nomenclatura do artigo, a persona dele - está ali, digamos, presente para sempre, como uma lápide-corpo, uma casca de árvore. Permite tanto a sinceridade espontânea quanto a fala mais pensada, mais passada: tem perfil de amigo meu falecido que anos depois ainda recebe mensagens belas, de quem sente vontade de conversar - ou simplesmente de passar um recado a ele.

pensei em você e vim cá ter ....tomar um cado do seu tempo, já que é um dos poucos anjos que eu conheço...sabe... hoje pensei na vida no céu, se fosse por aqui ia te pedir um mapa, um folder e um postal de souvenir.bjo

Teve outra que uma vez eu achei muito bonita - foi pouco depois de um acidente de estrada. Bicicleta e caminhão, coisas feitas para não andarem próximas. Deu no que deu. Teve muita gente - eu incluso - que achou muita imprudência do ciclista, e ficou com aquela raiva que a gente fica quando alguém comete um erro grande, mas.. passado o momento, é paciência. E eu me surpreendi com o que o melhor amigo dele falou. Acho que tem a ver um pouco com o que o artigo ali fala da pessoa morrer e então passar a ser revelada, por não controlar mais o que é dito a respeito dela.

lembra da lua que voce sempre me falo? pois é meu irmao, hoje nao tem lua, pq, pq hoje a lua é voce, lembra que voce falo que nao importa que voce nao acredite em nada, acredite na lua, pois nao importa onde, ela sempre vai ta la, e realmente ela sempre ta, soque hoje quem representa a lua é voce meu irmao, mesmo nao estando aqui hoje, sempre vai ta com a gente =/

Acabou ficando um post mais de constatação do que de reflexão. Não faz mal.

PS - Nas anotações pra esse post, tinha o nome de dois amigos meus falecidos.. junto do nome de um amigo meu que não morreu, e nenhum asterisco dizendo o porquê. Medo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

HiPOP!tético

Imagem e inspiração: http://www.xkcd.com/248/

Ainda não: era basicamente isso que tinha dito a ela, que apesar de os dois estarem juntos, ele sentia que era cedo ainda para começar essa nova fase do relacionamento. Felizmente, ela compreendia. Também era algo novo para ela, e no final das contas nenhum dos dois estava cegamente confiante para dar um passo a frente. Talvez fosse mesmo melhor esperar, não por algo a acontecer, mas mais pelo bem-estar, pelo bem-sentir de ambos. E, o mais importante, ela o amava. Isso o deixava sempre muito feliz, independente da situação.

Tudo parecia bem pacífico. Leonardo voltou para casa, trancou a porta, incerto de sua decisão. Pôs no rádio um rock melódico, abriu a geladeira, puxou alguma coisa para comer. Não sentia muita fome, sua mente ainda estava naquela conversa. Talvez devesse voltar, mudar de ideia... não. Melhor seguir. Tecnicamente não havia decidido por nada - ou melhor, na verdade era exatamente isso: havia decidido por nada. Prefiro esperar um pouco, amor. Não estou tão seguro, não sei se ainda é hora. É bem possível que no futuro a gente acabe morando junto, casando, até, por que não. Mas no momento eu ainda me sinto meio inseguro. É isso. Ela também fora sincera - sentia-se pronta, mas se ele preferia esperar, ela podia fazê-lo, por ele.

Foi descendo as escadas que ele percebeu: de alguma forma, as paredes pareciam mais distantes do que o normal, assim como o chão. Não devia ser nada, pensou. De repente, a luz pisca. Não bem isso, era mais como um piscar de realidade - a pressão que o degrau exercia na pele de seu pé descalço também desaparecera por um instante. Tudo ficara escuro, de súbito, por uma fração de segundo. Chegou rápido ao andar inferior, por alguma razão ele se sentia mais seguro no porão que fora transformado em ateliê. Era reconfortante, mesmo frente a um delírio como tal. Eis que sua visão pisca de novo, e ele ouve um som como o de um enorme balão estourando, mas como se o ouvisse por dentro - um POP! bastante nítido, na medida do possível.

Naquela fração de segundo que sucede ao estampido, Leonardo percebe um vulto conhecido à sua frente, sentado, e é tomado pelo espanto - o vulto era o seu! Estaria dormindo? Morto? Em outra dimensão? Delirando? É, delírio parecia a resposta mais plausível. Não teve tempo suficiente para refletir sobre o assunto, pois, pelo visto, a outra pessoa também ouvira o estrondo, já que se virara rapidamente em seguida. O instante que se segue é de contemplação e reconhecimento: sim, aquele à sua frente era ele mesmo, e parecia real o suficiente para que ninguém duvidasse. O sujeito provavelmente havia pensado em falar com quem quer que houvesse causado aquele barulho, pois fizera um movimento vago com o braço. Todavia aquilo não parecia fazer muita diferença no momento, já que o olhar que trocavam era de mútua incredulidade. Simplesmente não podia ser possível.

- Você...? - disse a figura, como se esperasse alguma resposta sensata.
- ...é. - devolveu Leonardo, ainda de pé. Era o máximo que tinha de resposta pra situação.
- Como que você sou eu?
- Não sei. Certeza que a gente é o mesmo?

O rapaz levantou-se. Mesma altura, forma do rosto, cabelo, voz, aparência rigorosamente igual. Só diferiam nas roupas, mas apenas da mesma forma que uma pessoa difere de si mesma quando troca de roupa.

- De onde você veio?
- Eu estava em casa, desci aqui até o ateliê e vim parar aqui.
- Mas como? Eu teria visto você entrar. A porta está fechada, olha.

Olhou. Estava mesmo. Bom, se fosse delírio, talvez ele descobrisse logo. Apesar de desejar em seu íntimo que aquele fosse apenas outro sonho sem nexo do qual ele acordaria a qualquer momento, decidiu tratar objetivamente a questão.

- Onde estamos?
- Em casa, Rua Santos Gouveia, 683... o que estou falando, você deve ser apenas uma alucinação!
- Será então que só você consegue me ver?
- Talvez... - o telefone toca. - Atende você. Atende e passa pra mim, só pra ver se acontece alguma coisa.

Ele pondera por um instante, e pega o telefone. Nada além da normalidade passa pelo quarto, se é se pode falar em normalidade numa situação como tal.

- Alô.
- Alô! O Leo está?
- Sou eu.
- Ah, e aí rapaz!
- E aí! Só espera um pouco, é rápido.

Com a mão sobre o bocal do telefone, ele sussurra alguma coisa e seu sósia atende a ligação, mas desliga pouco tempo depois, tornando a se encarar.

- Você veio do futuro ou do passado, por acaso?
- Vou saber! Que dia é hoje?
- 20 de fevereiro. De 2009.
- Huuuum! Então eu vim mesmo do futuro. Onde eu tava era dia 22.
- Mas pelo jeito você não veio me passar nenhuma mensagem especial, veio?
- Não que eu saiba.

(um pequeno silêncio)

- Me conta o que você fez, nesses dois dias.
- Nada demais, sábado foi um dia normal, e hoje - ahm, no dia 22 eu fui na casa da Clarisse, e... ah, a gente conversou um pouco. Falei que prefiro esperar um pouco, que acho que é cedo... sabe, né.
- Sei. E o que ela falou? - o súbito aumento do interesse era notável em sua voz.
- Ela disse que tudo bem. Que se sente pronta, mas se eu preferir esperar, ela pode esperar também.
- Sério? Mas que estranho...
- O quê?
- Eu meio que já sabia tudo isso que você falou.

Ele não respondeu nada. Aquela conversa já estava além do que ele era capaz de inventar; agora, ser produto do pensamento de outra pessoa - ou melhor, do proprio pensamento, estava quase no limite do aceitável. Toda a sua memória, suas experiências vividas... será que alguma coisa teria realmente acontecido?

- Logo antes do barulho e de você aparecer, eu estava justamente pensando sobre isso - estava imaginando, que, se eu dissesse o que você falou pra ela, ela reagiria dessa forma. Na verdade, o que eu imaginei que ela responderia era mesmo algo bem próximo do que você falou. Agora já não tenho certeza que você veio mesmo do futuro. Você não saiu da minha mente, saiu?
- Já disse que não sei. Bom, se eu tiver saído da sua cabeça, eu saberia tudo o que você sabe, nem mais nem menos, certo?
- E no entanto você lembra de ter conversado com a Cla, num dia que eu ainda nem vivi. (- Sim.) - Do que mais você lembra? Você disse que amanhã vai ser, ou foi, um dia normal, o que você fez no sábado?
- Ah, foi um dia normal mesmo, não fiz nada demais, eu... fiquei em casa.
- Tem certeza?
- Agora que você me pergunta, sabe que eu realmente não lembro muito bem do que fiz? Mas pera aí. Se o que eu vivi era o que você estava imaginando, você deveria lembrar o que eu fiz ontem, não?
- Esse é o problema: eu não estava pensando sobre o que faria amanhã, mas sim o que falaria pra Cla quando a visse, domingo, no caso. E pelo jeito essa é a sua única memória.
- Isso e o que aconteceu depois. Fui pra casa, liguei o rádio, comi e desci aqui.
- Ok, essa parte eu não tinha imaginado. Eu só fiquei pensando na conversa que tive com ela.
- Então eu não sou só da sua mente! Não, para, é claro que não sou! Eu sou real, só não lembro o que fiz ontem! Tudo isso é muito esquisito. Calma... no instante em que eu apareci aqui, naquele momento mesmo, no que você estava pensando?
- Nisso que eu te disse. Se bem que na hora mesmo não sei se ainda estava pensando sobre isso. Eu acho que me distraí. Faz diferença?
- Bom, parece que você só imaginou a conversa até a parte que ela responde. Mesmo assim, eu continuei existindo depois de você parar de imaginar, isso supondo que eu seja mesmo imaginação sua.
- ...pelo jeito sim. E por mais difícil que já pareça, de alguma forma você saiu de onde quer que estava e veio parar aqui. O que você estava fazendo na hora H?
- Não sei! Eu desci as escadas, mas nem deu tempo de pensar muito a respeito, porque de repente a luz piscou e você estava aí! Ou eu estava aqui, não sei o que é pior.

Já estavam ultrapassando a linha do bom-senso. Ele se sentou, observado pelo seu gêmeo da antevéspera. Reconstruindo a situação: conversou com a namorada, chegou em casa, relaxou, desceu as escadas, e BUM, estava olhando para um clone seu, que dizia ter imaginado o que ele vivera naquele dia, mas não sabia dizer nada sobre as coisas de que ele também não tinha muita memória. Seria mesmo verdade? Será que ele era mesmo oriundo de sua própria hipótese sobre o que faria no final de semana? Não parecia muito convincente.

- Ô... Ô Leonardo.
- Oi.
- Se você estava imaginando a minha... o meu presente, ou melhor, o que aconteceu comigo agora há pouco, o que aconteceria se eu tivesse dito qualquer outra coisa a ela?
- É mesmo né. E se você dissesse algo completamente diferente?

Puseram-se a pensar. Se estivessem menos empenhados em franzir o cenho, fazer poses de quem realmente está tentando raciocinar e - de fato - se esforçar para extrair algo da massa cinzenta, teriam notado que o ar ao seu redor parecia menos nítido; a luz já não passava direito através dele, mas sim tomava caminhos um tanto sinuosos. De repente, POP! Ambos olham um para o outro, e, ao não notarem diferença entre si, olham para o quarto, que também parecia suficientemente normal, a não ser pelas duas figuras que ali se encontravam, um onde o Leonardo que se levantara estava originalmente sentado, próximo ao que se havia acabado de se sentar estava o outro. No rosto dos dois há novamente olhares incrédulos, ainda que diferindo um tanto de intensidade entre si. O último, então, surpreende a todos ao sair de seu quase-transe:

- Merda! Achei que fosse dar certo. Achei que se eu fizesse você - olha e aponta com a cabeça para o sujeito que aparecera com ele - imaginar o que aconteceria se eu dissesse outra coisa pra ela podíamos resolver essa situação. Mas pelo jeito fiquei tempo demais imaginando os efeitos de fazer você pensar isso.

Um tanto confusos, os xarás começam a discutir entre si. Não vem à tona nenhuma conclusão notável, já que ali na verdade era a mesma mente falando consigo mesma, numa conversa que só se mostraria útil ao revelar o que na verdade eles já sabiam, todo esse tempo. Contudo, autoconhecimento não era de muita importância naquela situação, ou ao menos não comparado à magnitude do estranhamento que o quadro gerava para os quatro. Depois de alguns minutos, e já sem duvidar tanto da possibilidade de ter sido expulso (duas vezes) de dentro de sua própria cabeça, Leonardo resolve refletir melhor acerca de tudo o que lhe ocorrera até então, mas, principalmente, do que ainda viria. E se ainda estivesse dentro da imaginação de alguém? Ou mesmo de si mesmo, de uma imagem sua exatamente no mesmo lugar, naquele exato canto do cômodo. Por outro lado, ele próprio já estava no papel do imaginador - pelo que sugeriam as circunstâncias, um momento maior de distração poderia muito bem causar mais um estouro estranho daqueles, e seu pensamento, seu sósia a imaginá-lo, deixaria de ser ficção sua, e passaria a compartilhar da realidade que até aquele momento era dele - ou das ideias de quem o estaria imaginando. Mas e se fosse o sujeito quem se distraísse no decorrer do processo? Quem iria primeiro parar aonde? Ele fitou o que poderia chamar de suas réplicas: apesar de tudo, sentia que ele era o único de verdade ali, se é que poderia falar assim. Os outros pareciam, só...

Naquele instante breve e virtual, ele percebeu que havia se distraído.
POP!

PS - Acabei de encontrar:

Significado de Tético
adj. Filosofia. Na terminologia fenomenológica, diz-se do que supõe a existência da consciência ou do que se afirma como ela.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A garota mais sem graça que eu já conheci

Que ninguém se ofenda, pois não é essa a intenção. Amém.

Devia ter doze anos quando a conheci. Entrou na minha turma, na escola, no começo do ano, como qualquer pessoa. Ela não tinha apelido, como era de se esperar. Mais tarde, as amigas a chamavam pela primeira sílaba do nome, o que também era completamente previsível.

Ela passou pela escola sem maior dificuldade. Teve lá seus problemas: se não me engano não gostava de matemática, não ia muito bem em português e talvez não entendesse química direito. Ou física, não sei. Talvez as duas. Ficou de recuperação algumas vezes, outras não. Nada severamente preocupante. Não era, assim, uma das piores alunas - conversava na aula, mas não a ponto de se atrapalhar demais, ou se atrapalhar os outros. Com quem ela conversava eu não sei - provavelmente com quem sentava ali perto, faz mais sentido. Também nunca foi uma das melhores: se a professora sabia seu nome, não faço ideia do motivo. Não chamava a atenção, mas também não era necessário que chamassem a sua. Ninguém tinha por que reclamar dela, pois realmente não fazia nada.

Não direi que era feia - confesso que não fazia o meu tipo, mas talvez ela tivessa um namorado. Ou tivesse tido. Ou tenha tido, quem sabe até tenha agora. De qualquer forma, não era de todo mal, mas também não era bela a ponto de se destacar na multidão. Na formatura garanto que estava bonita, pelo simples fato de que TODA garota fica bonita na sua formatura. Quando não fica, é sinal de que há ali o que não tem salvação - mau gosto. Mas não falta de beleza, salvo casos berrantes. Aqui evidentemente não era um desses, pois se fosse seria fácil de lembrar. Agora que vejo, eu também não a vi berrar. Nem viria. Bem, não era apenas mais um rostinho bonito, mas não dava medo. Se não me falha a memória ela tinha um sorriso simpático. Talvez seja só minha imaginação, mas convenhamos que trata-se de algo plenamente plausível.

O fato é que ela nunca chamou atenção, nem para algo bom, nem para algo ruim. Jamais atraiu o gosto ou o desgosto. Não usava roupas estranhas, nunca lançou moda. Não passou gripe pra ninguém, não contou piada também. Todo esse tempo eu tinha certeza de que era uma pessoa que eu ia esquecer com facilidade, pelo simples fato de não ter o que guardar. Aconteceu de sairmos juntos no mesmo grupo, e provavelmente demos risadas das mesmas coisas, mas e daí? Poderia substituí-la por uma pessoa anônima genérica que daria na mesma. Quem era amigo dela? Umas amigas minhas. Mas quais eram as verdadeiras amigas, aquelas inseparáveis e tudo o mais? Não sei. Certamente havia alguém - prefiro acreditar que havia. Também nunca a vi bêbada; não que isso fosse parâmetro, mas vale acrescentar que ela não davaz esse tipo de vexame - na verdade, não lembro muito de tê-la visto em alguma festa ou semelhante, de qualquer forma.

Seu nome tinha um H? Não lembro. Acho que tinha acento. Hoje ela deve estar fazendo direito em alguma faculdade aleatória, ou cursinho, não sei. Mas certamente não era algo que me fizesse lembrar. Se fosse algum curso profundamente patético ou sem sentido, ou algo ousado, novo e desafiador, não teria como esquecer. Mas não, talvez fosse administração, quem sabe. Não faz muita diferença.

Talvez daqui a anos, décadas, nós nos encontremos. Um corredor de supermercado, uma fila de banco. "Olha, amor, eu acho que estudei com aquela ali. Só não lembro onde foi. Ah, deve ser conhecida de outro lugar. Ela é vizinha nossa?" - por outro lado, tenho uma ligeira impressão que posso demorar mais esquecer que vou esquecê-la: por incrível e ilógico que pareça, acabou por ser o exemplo insuperável (insuperado) de pessoa quase-interessantemente desinteressante. Não que ela realmente o fosse, creio que não era. Prefiro imaginar que não. Mas simplesmente não havia o que achar! Não se tratava de uma miss-teriosa, eram apenas detalhes (sequer segredos) que ninguém tinha vontade de saber.

Se algum dia alguém acabar por superar tamanha falta de... de je ne sais quoi, terei aí um sincero paradoxo: mais chato é quem é lembrado ou esquecido, tão chato que é?

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Mais um post metalinguístico

Tenho vontade de escrever. Tenho muita vontade de escrever, na verdade. O que não tenho tanto é tempo, preciso dormir esta noite, recuperar as horas perdidas na labuta da madrugada passada, tentar pôr em dia o sono perdido aos poucos durante a semana, a hora diária que se acumula em cansaço. Mas também preciso escrever, tenho tarefas e trabalhos a cumprir; é relatório, é seminário; purgatório, corolário. Bastante pra pensar, pra ex-pôr no papel, pra escrever até perder a vontade.

Mas ela não some. O que eu quero mais escrever não é o que me mandam, não é o que consta nas minhas obrigações e me comprometo a fazer. A sede que me dá é a de mostrar minha ideia e opinião, mostrar ao mundo - e não só ao mundo que me rodeia, mas ao mundo que eu alcanço, que está longe dos meus braços e das minhas mãos, mas não dos meus olhos, dos meus ouvidos. A ânsia vem daquele detalhe que parece que só eu reparei, da falta que eu sinto e não percebia, da beleza que eu não via. Provavelmente nem é nada tão relevante, mas é, pra mim. E talvez seja isso - para mim. Talvez o post no blog não seja tanto para os leitores, massim para o próprio autor. Para o luxo de seu ego? Para achar que escreve? Para pensar que é lido, ou, quando isso se realiza, crer em si mesmo, crer nas próprias palavras? Talvez. Seria uma ótima maneira de uma mentira se fazer acreditada: não é ela que vira verdade, quando dita mil vezes?

Eu não acredito muito nisso. A frase da mentira dá pra discutir, mas não estou falando dela; para mim, o blog não é só para o bel-prazer de ser lido. Também não só pra escrever, porque pra isso tem diário, e sei lá, não se coloca algo na internet pensando que nunca será lido. Não, não, acho que o blog tem outra função. Qual, então? Informar? Certamente não o caso deste. Ao menos não no sentido mais imediato de informar. Seria, então, unir o útil ao agradável, escrevendo quem goste de escrever e lendo quem gosta de ler? Perhaps.

Agora vou dormir, PQP, que canseira.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Isaac Asimov - A Última Pergunta

Um texto impressionante de um cara que escreveu coisas impressionantes. Nada mais.


Isaac Asimov - A Última Pergunta

A última pergunta foi feita pela primeira vez, meio que de brincadeira, no dia 21 de maio de 2061, quando a humanidade dava seus primeiros passos em direção à luz. A questão nasceu como resultado de uma aposta de cinco dólares movida a álcool, e aconteceu da seguinte forma...

Alexander Adell e Bertram Lupov eram dois dos fiéis assistentes de Multivac. Eles conheciam melhor do que qualquer outro ser humano o que se passava por trás das milhas e milhas da carcaça luminosa, fria e ruidosa daquele gigantesco computador. Ainda assim, os dois homens tinham apenas uma vaga noção do plano geral de circuitos que há muito haviam crescido além do ponto em que um humano solitário poderia sequer tentar entender.

Multivac ajustava-se e corrigia-se sozinho. E assim tinha de ser, pois nenhum ser humano poderia fazê-lo com velocidade suficiente, e tampouco da forma adequada. Deste modo, Adell e Lupov operavam o gigante apenas sutil e superficialmente, mas, ainda assim, tão bem quanto era humanamente possível. Eles o alimentavam com novos dados, ajustavam as perguntas de acordo com as necessidades do sistema e traduziam as respostas que lhes eram fornecidas. Os dois, assim como seus colegas, certamente tinham todo o direito de compartilhar da glória que era Multivac.

Por décadas, Multivac ajudou a projetar as naves e enredar as trajetórias que permitiram ao homem chegar à Lua, Marte e Vênus, mas para além destes planetas, os parcos recursos da Terra não foram capazes de sustentar a exploração. Fazia-se necessária uma quantidade de energia grande demais para as longas viagens. A Terra explorava suas reservas de carvão e urânio com eficiência crescente, mas havia um limite para a quantidade de ambos.

No entanto, lentamente Multivac acumulou conhecimento suficiente para responder questões mais profundas com maior fundamentação, e em 14 de maio de 2061, o que não passava de teoria tornou-se real.

A energia do sol foi capturada, convertida e utilizada diretamente em escala planetária. Toda a Terra paralisou suas usinas de carvão e fissões de urânio, girando a alavanca que conectou o planeta inteiro a uma pequena estação, de uma milha de diâmetro, orbitando a Terra à metade da distância da Lua. O mundo passou a correr através de feixes invisíveis de energia solar.

Sete dias não foram o suficiente para diminuir a glória do feito e Adell e Lupov finalmente conseguiram escapar das funções públicas e encontrar-se em segredo onde ninguém pensaria em procurá-los, nas câmaras desertas subterrâneas onde se encontravam as porções do esplendoroso corpo enterrado de Multivac. Subutilizado, descansando e processando informações com estalos preguiçosos, Multivac também havia recebido férias, e os dois apreciavam isso. A princípio, eles não tinham a intenção de incomodá-lo.

Haviam trazido uma garrafa consigo e a única preocupação de ambos era relaxar na companhia do outro e da bebida.

"É incrível quando você pára pra pensar…," disse Adell. Seu rosto largo guardava as linhas da idade e ele agitava o seu drink vagarosamente, enquanto observava os cubos de gelo nadando desengonçados. "Toda a energia que for necessária, de graça, completamente de graça! Energia suficiente, se nós quiséssemos, para derreter toda a Terra em uma grande gota de ferro líquido, e ainda assim não sentiríamos falta da energia utilizada no processo. Toda a energia que nós poderíamos um dia precisar, para sempre e eternamente."

Lupov movimentou a cabeça para os lados. Ele costumava fazer isso quando queria contrariar, e agora ele queria, em parte porque havia tido de carregar o gelo e os utensílios. "Eternamente não," ele disse.

"Ah, diabos, quase eternamente. Até o sol se apagar, Bert."

"Isso não é eternamente."

"Está bem. Bilhões e bilhões de anos. Dez bilhões, talvez. Está satisfeito?"

Lupov passou os dedos por entre seus finos fios de cabelo como que para se assegurar de que o problema ainda não estava acabado e tomou um gole gentil da sua bebida. "Dez bilhões de anos não é a eternidade"

"Bom, vai durar pelo nosso tempo, não vai?"

"O carvão e o urânio também iriam."

"Está certo, mas agora nós podemos ligar cada nave individual na Estação Solar, e elas podem ir a Plutão e voltar um milhão de vezes sem nunca nos preocuparmos com o combustível. Você não conseguiria fazer isso com carvão e urânio. Se não acredita em mim, pergunte ao Multivac."

"Não preciso perguntar a Multivac. Eu sei disso"

"Então trate de parar de diminuir o que Multivac fez por nós," disse Adell nervosamente, "Ele fez tudo certo".

"E quem disse que não fez? O que estou dizendo é que o sol não vai durar para sempre. Isso é tudo que estou dizendo. Nós estamos seguros por dez bilhões de anos, mas e depois?" Lupov apontou um dedo levemente trêmulo para o companheiro. "E não venha me dizer que nós iremos trocar de sol"

Houve um breve silêncio. Adell levou o copo aos lábios apenas ocasionalmente e os olhos de Lupov se fecharam. Descansaram um pouco, e quando suas pálpebras se abriram, disse, "Você está pensando que iremos conseguir outro sol quando o nosso estiver acabado, não está?"

"Não, não estou pensando."

"É claro que está. Você é fraco em lógica, esse é o seu problema. É como o personagem da história, que, quando surpreendido por uma chuva, corre para um grupo de árvores e abriga-se embaixo de uma. Ele não se preocupa porque quando uma árvore fica molhada demais, simplesmente vai para baixo de outra."

"Entendi," disse Adell. "Não precisa gritar. Quando o sol se for, as outras estrelas também terão se acabado."

"Pode estar certo que sim" murmurou Lupov. "Tudo teve início na explosão cósmica original, o que quer que tenha sido, e tudo terá um fim quando as estrelas se apagarem. Algumas se apagam mais rápido que as outras. Ora, as gigantes não duram cem milhões de anos. O sol irá brilhar por dez bilhões de anos e talvez as anãs permaneçam assim por duzentos bilhões. Mas nos dê um trilhão de anos e só restará a escuridão. A entropia deve aumentar ao seu máximo, e é tudo."

"Eu sei tudo sobre a entropia," disse Adell, mantendo a sua dignidade.

"Duvido que saiba."

"Eu sei tanto quanto você."

"Então você sabe que um dia tudo terá um fim."

"Está certo. E quem disse que não terá?"

"Você disse, seu tonto. Você disse que nós tínhamos toda a energia de que precisávamos, para sempre. Você disse ´para sempre`."

Era a vez de Adell contrariar. "Talvez nós possamos reconstruir as coisas de volta um dia," ele disse.

"Nunca."

"Por que não? Algum dia."

"Nunca"

"Pergunte a Multivac."

"Você pergunta a Multivac. Eu te desafio. Aposto cinco dólares que isso não pode ser feito."

Adell estava bêbado o bastante para tentar, e sóbrio o suficiente para construir uma sentença com os símbolos e as operações necessárias em uma questão que, em palavras, corresponderia a esta: a humanidade poderá um dia sem nenhuma energia disponível ser capaz de reconstituir o sol a sua juventude mesmo depois de sua morte?

Ou talvez a pergunta possa ser posta de forma mais simples da seguinte maneira: A quantidade total de entropia no universo pode ser revertida?

Multivac mergulhou em silêncio. As luzes brilhantes cessaram, os estalos distantes pararam.

E então, quando os técnicos assustados já não conseguiam mais segurar a respiração, houve uma súbita volta à vida no visor integrado àquela porção de Multivac. Cinco palavras foram impressas: "DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."

Na manhã seguinte, os dois, com dor de cabeça e a boca seca, já não lembravam do incidente.

* * *

Jerrodd, Jerrodine, e Jerrodette I e II observavam a paisagem estelar no visor se transformar enquanto a passagem pelo hiperespaço consumava-se em uma fração de segundos. De repente, a presença fulgurante das estrelas deu lugar a um disco solitário e brilhante, semelhante a uma peça de mármore centralizada no televisor.

"Este é X-23," disse Jerrodd em tom de confidência. Suas mãos finas se apertaram com força por trás das costas até que as juntas ficassem pálidas.

As pequenas Jerodettes haviam experimentado uma passagem pelo hiperespaço pela primeira vez em suas vidas e ainda estavam conscientes da sensação momentânea de tontura. Elas cessaram as risadas e começaram a correr em volta da mãe, gritando, "Nós chegamos em X-23, nós chegamos em X-23!"

"Quietas, crianças." Disse Jerrodine asperamente. "Você tem certeza Jerrodd?"

"E por que não teria?" Perguntou Jerrodd, observando a protuberância metálica que jazia abaixo do teto. Ela tinha o comprimento da sala, desaparecendo nos dois lados da parede, e, em verdade, era tão longa quanto a nave.

Jerrodd tinha conhecimentos muito limitados acerca do sólido tubo de metal. Sabia, por exemplo, que se chamava Microvac, que era permitido lhe fazer questões quando necessário, e que ele tinha a função de guiar a nave para um destino pré-estabelecido, além de abastecer-se com a energia das várias Estações Sub-Galácticas e fazer os cálculos para saltos no hiperespaço.

Jerrodd e sua família tinham apenas de aguardar e viver nos confortáveis compartimentos da nave. Alguém um dia disse a Jerrodd que as letras "ac" na extremidade de Microvac significavam "automatic computer" em inglês arcaico, mas ele mal era capaz de se lembrar disso.

Os olhos de Jerrodine ficaram úmidos quando observava o visor. "Não tem jeito. Ainda não me acostumei com a idéia de deixar a Terra."

"Por que, meu deus?" inquiriu Jerrodd. "Nós não tínhamos nada lá. Nós teremos tudo em X-23. Você não estará sozinha. Você não será uma pioneira. Há mais de um milhão de pessoas no planeta. Por Deus, nosso bisneto terá que procurar por novos mundos porque X-23 já estará super povoado." E, depois de uma pausa reflexiva, "No ritmo em que a raça tem se expandido, é uma benção que os computadores tenham viabilizado a viagem interestelar."

"Eu sei, eu sei", disse Jerrodine com descaso.

Jerrodete I disse prontamente, "Nosso Microvac é o melhor de todos."

"Eu também acho," disse Jerrodd, alisando o cabelo da filha.

Ter um Microvac próprio produzia uma sensação aconchegante em Jerrodd e o deixava feliz por fazer parte daquela geração e não de outra. Na juventude de seu pai, os únicos computadores haviam sido máquinas monstruosas, ocupando centenas de milhas quadradas, e cada planeta abrigava apenas um. Eram chamados de ACs Planetários. Durante um milhar de anos, eles só fizeram aumentar em tamanho, até que, de súbito, veio o refinamento. No lugar dos transistores, foram implementadas válvulas moleculares, permitindo que até mesmo o maior dos ACs Planetários fosse reduzido à metade do volume de uma espaçonave.

Jerrodd sentiu-se elevado, como sempre acontecia quando pensava que seu Microvac pessoal era muitas vezes mais complexo do que o antigo e primitivo Multivac que pela primeira vez domou o sol, e quase tão complexo quanto o AC Planetário da Terra, o maior de todos, quando este solucionou o problema da viagem hiperespacial e tornou possível ao homem chegar às estrelas.
"Tantas estrelas, tantos planetas," pigarreou Jerrodine, ocupada com seus pensamentos. "Eu acho que as famílias estarão sempre à procura de novos mundos, como nós estamos agora."

"Não para sempre," disse Jerrodd, com um sorriso. "A migração vai terminar um dia, mas não antes de bilhões de anos. Muitos bilhões. Até as estrelas têm um fim, você sabe. A entropia precisa aumentar."

"O que é entropia, papai?" Jerrodette II perguntou, interessada.

"Entropia, meu bem, é uma palavra para o nível de desgaste do Universo. Tudo se gasta e acaba, foi assim que aconteceu com o seu robozinho de controle remoto, lembra?"

"Você não pode colocar pilhas novas, como em meu robô?"

"As estrelas são as pilhas do universo, querida. Uma vez que elas estiverem acabadas, não haverá mais pilhas."

Jerrodette I se prontificou a responder. "Não deixe, papai. Não deixe que as estrelas se apaguem."

"Olha o que você fez," sussurrou Jerrodine, exasperada.

"Como eu ia saber que elas ficariam assustadas?" Jerrodd sussurrou de volta.

"Pergunte ao Microvac," propôs Jerrodette I. "Pergunte a ele como acender as estrelas de novo."

"Vá em frente," disse Jerrodine. "Ele vai aquietá-las." (Jerrodette II já estava começando a chorar.)

Jerrodd se mostrou incomodado. "Bem, bem, meus anjinhos, vou perguntar a Microvac. Não se preocupem, ele vai nos ajudar."

Ele fez a pergunta ao computador, adicionando, "Imprima a resposta".

Jerrodd olhou para a o fino pedaço de papel e disse, alegremente, "Viram? Microvac disse que irá cuidar de tudo quando a hora chegar, então não há porque se preocupar."

Jerrodine disse, "E agora crianças, é hora de ir para a cama. Em breve nós estaremos em nosso novo lar."

Jerrodd leu as palavras no papel mais uma vez antes de destruí-lo: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.

Ele deu de ombros e olhou para o televisor, X-23 estava logo à frente.

* * *

VJ-23X de Lameth fixou os olhos nos espaços negros do mapa tridimensional em pequena escala da Galáxia e disse, "Me pergunto se não é ridículo nos preocuparmos tanto com esta questão."

MQ-17J de Nicron balançou a cabeça. "Creio que não. No presente ritmo de expansão, você sabe que a galáxia estará completamente tomada dentro de cinco anos."

Ambos pareciam estar nos seus vinte anos, ambos eram altos e tinham corpos perfeitos.

"Ainda assim," disse VJ-23X, "hesitei em enviar um relatório pessimista ao Conselho Galáctico."

"Eu não consigo pensar em outro tipo de relatório. Agite-os. Nós precisamos chacoalhá-los um pouco."

VJ-23X suspirou. "O espaço é infinito. Cem bilhões de galáxias estão a nossa espera. Talvez mais."

"Cem bilhões não é o infinito, e está ficando menos ainda a cada segundo. Pense! Há vinte mil anos, a humanidade solucionou pela primeira vez o paradigma da utilização da energia solar, e, poucos séculos depois, a viagem interestelar tornou-se viável. A humanidade demorou um milhão de anos para encher um mundo pequeno e, depois disso, quinze mil para abarrotar o resto da galáxia. Agora a população dobra a cada dez anos…"

VJ-23X interrompeu. "Devemos agradecer à imortalidade por isso."

"Muito bem. A imortalidade existe e nós devemos levá-la em conta. Admito que ela tenha o seu lado negativo. O AC Galáctico já solucionou muitos problemas, mas, ao fornecer a resposta sobre como impedir o envelhecimento e a morte, sobrepujou todas as outras conquistas."

"No entanto, suponho que você não gostaria de abandonar a vida."

"Nem um pouco." Respondeu MQ-17J, emendando. "Ainda não. Eu não estou velho o bastante. Você tem quantos anos?"
"Duzentos e vinte e três, e você?"

"Ainda não cheguei aos duzentos. Mas, voltando à questão; a população dobra a cada dez anos, uma vez que esta galáxia estiver lotada, haverá uma outra cheia dentro de dez anos. Mais dez e teremos ocupado por inteiro mais duas galáxias. Outra década e encheremos mais quatro. Em cem anos, contaremos um milhar de galáxias transbordando de gente. Em mil anos, um milhão de galáxias. Em dez mil, todo o universo conhecido. E depois?

VJ-23X disse, "Além disso, há um problema de transporte. Eu me pergunto quantas unidades de energia solar serão necessárias para movimentar as populações de uma galáxia para outra."

"Boa questão. No presente momento, a humanidade consome duas unidades de energia solar por ano."

"Da qual a maior parte é desperdiçada. Afinal, nossa galáxia sozinha produz mil unidades de energia solar por ano e nós aproveitamos apenas duas."

"Certo, mas mesmo com 100% de eficiência, podemos apenas adiar o fim. Nossa demanda energética tem crescido em progressão geométrica, de maneira ainda mais acelerada do que a população. Ficaremos sem energia antes mesmo que nos faltem galáxias. É uma boa questão. De fato uma ótima questão."

"Nós precisaremos construir novas estrelas a partir do gás interestelar."

"Ou a partir do calor dissipado?" perguntou MQ-17J, sarcástico.

"Pode haver algum jeito de reverter a entropia. Nós devíamos perguntar ao AC Galáctico."

VJ-23X não estava realmente falando sério, mas MQ-17J retirou o seu Comunicador-AC do bolso e colocou na mesa diante dele.
"Parece-me uma boa idéia," ele disse. "É algo que a raça humana terá de enfrentar um dia."

Ele lançou um olhar sóbrio para o seu pequeno Comunicador-AC. Tinha apenas duas polegadas cúbicas e nada dentro, mas estava conectado através do hiperespaço com o poderoso AC Galáctico que servia a toda a humanidade. O próprio hiperespaço era parte integral do AC Galáctico.

MQ-17J fez uma pausa para pensar se algum dia em sua vida imortal teria a chance de ver o AC Galáctico. A máquina habitava um mundo dedicado, onde uma rede de raios de força emaranhados alimentava a matéria dentro da qual ondas de submésons haviam tomado o lugar das velhas e desajeitadas válvulas moleculares. Ainda assim, apesar de seus componentes etéreos, o AC Galáctico possuía mais de mil pés de comprimento.

De súbito, MQ-17J perguntou para o seu Comunicador-AC, "Poderá um dia a entropia ser revertida?"

VJ-23X disse, surpreso, "Oh, eu não queria que você realmente fizesse essa pergunta."

"Por que não?"

"Nós dois sabemos que a entropia não pode ser revertida. Você não pode construir uma árvore de volta a partir de fumaça e cinzas."

"Existem árvores no seu mundo?" Perguntou MQ-17J.

O som do AC Galáctico fez com que silenciassem. Sua voz brotou melodiosa e bela do pequeno Comunicador-AC em cima da mesa. Dizia: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.

VJ-23X disse, "Viu!"

Os dois homens retornaram à questão do relatório que tinham de apresentar ao conselho galáctico.

* * *

A mente de Zee Prime navegou pela nova galáxia com um leve interesse nos incontáveis turbilhões de estrelas que pontilhavam o espaço. Ele nunca havia visto aquela galáxia antes. Será que um dia conseguiria ver todas? Eram tantas, cada uma com a sua carga de humanidade. Ainda que essa carga fosse, virtualmente, peso morto. Há tempos a verdadeira essência do homem habitava o espaço.

Mentes, não corpos! Há eons os corpos imortais ficaram para trás, em suspensão nos planetas. De quando em quando erguiam-se para realizar alguma atividade material, mas estes momentos tornavam-se cada vez mais raros. Além disso, poucos novos indivíduos vinham se juntar à multidão incrivelmente maciça de humanos, mas o que importava? Havia pouco espaço no universo para novos indivíduos.

Zee Prime deixou seus devaneios para trás ao cruzar com os filamentos emaranhados de outra mente.

"Sou Zee Prime, e você?"

"Dee Sub Wun. E a sua galáxia, qual é?"

"Nós a chamamos apenas de Galáxia. E você?"

"Nós também. Todos os homens chamam as suas Galáxias de Galáxias, não é?"

"Verdade, já que todas as Galáxias são iguais."

"Nem todas. Alguma em particular deu origem à raça humana. Isso a torna diferente."

Zee Prime disse, "Em qual delas?"

"Não posso responder. O AC Universal deve saber."

"Vamos perguntar? Estou curioso."

A percepção de Zee Prime se expandiu até que as próprias Galáxias encolhessem e se transformassem em uma infinidade de pontos difusos a brilhar sobre um largo plano de fundo. Tantos bilhões de Galáxias, todas abrigando seus seres imortais, todas contando com o peso da inteligência em mentes que vagavam livremente pelo espaço. E ainda assim, nenhuma delas se afigurava singular o bastante para merecer o título de Galáxia original. Apesar das aparências, uma delas, em um passado muito distante, foi a única do universo a abrigar a espécie humana.

Zee Prime, imerso em curiosidade, chamou: "AC Universal! Em qual Galáxia nasceu o homem?"

O AC Universal ouviu, pois em cada mundo e através de todo o espaço, seus receptores faziam-se presentes. E cada receptor ligava-se a algum ponto desconhecido onde se assentava o AC Universal através do hiperespaço.

Zee Prime sabia de um único homem cujos pensamentos haviam penetrado no campo de percepção do AC Universal, e tudo o que ele viu foi um globo brilhante difícil de enxergar, com dois pés de comprimento.

"Como pode o AC Universal ser apenas isso?" Zee Prime perguntou.

"A maior parte dele permanece no hiperespaço, onde não é possível imaginar as suas proporções."

Ninguém podia, pois a última vez em que alguém ajudou a construir um AC Universal jazia muito distante no tempo. Cada AC Universal planejava e construía seu sucessor, no qual toda a sua bagagem única de informações era inserida.

O AC Universal interrompeu os pensamentos de Zee Prime, não com palavras, mas com orientação. Sua mente foi guiada através do espesso oceano das Galáxias, e uma em particular expandiu-se e se abriu em estrelas.

Um pensamento lhe alcançou, infinitamente distante, infinitamente claro. "ESTA É A GALÁXIA ORIGINAL DO HOMEM."

Ela não tinha nada de especial, era como tantas outras. Zee Prime ficou desapontado.

"Dee Sub Wun, cuja mente acompanhara a outra, disse de súbito, "E alguma dessas é a estrela original do homem?"

O AC Universal disse, "A ESTRELA ORIGINAL DO HOMEM ENTROU EM COLAPSO. AGORA É UMA ANÃ BRANCA."

"Os homens que lá viviam morreram?" perguntou Zee Prime, sem pensar.

"UM NOVO MUNDO FOI ERGUIDO PARA SEUS CORPOS HÁ TEMPO."

"Sim, é claro," disse Zee Prime. Sentiu uma distante sensação de perda tomar-lhe conta. Sua mente soltou-se da Galáxia do homem e perdeu-se entre os pontos pálidos e esfumaçados. Ele nunca mais queria vê-la.

Dee Sub Wun disse, "O que houve?"

"As estrelas estão morrendo. Aquela que serviu de berço à humanidade já está morta."

"Todas devem morrer, não?"

"Sim. Mas quando toda a energia acabar, nossos corpos irão finalmente morrer, e você e eu partiremos junto com eles."

"Vai levar bilhões de anos."

"Não quero que isso aconteça nem em bilhões de anos. AC Universal! Como a morte das estrelas pode ser evitada?"

Dee Sub Wun disse perplexo, "Você perguntou se há como reverter a direção da entropia!"

E o AC Universal respondeu: "AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."

Os pensamentos de Zee Prime retornaram para sua Galáxia. Não dispensou mais atenção a Dee Sub Wun, cujo corpo poderia estar a trilhões de anos luz, ou na estrela vizinha do corpo de Zee Prime. Não importava.

Com tristeza, Zee Prime passou a coletar hidrogênio interestelar para construir uma pequena estrela para si. Se as estrelas devem morrer, ao menos algumas ainda podiam ser construídas.

* * *

O Homem pensou consigo mesmo, pois, de alguma forma, ele era apenas um. Consistia de trilhões, trilhões e trilhões de corpos muito antigos, cada um em seu lugar, descansando incorruptível e calmamente, sob os cuidados de autômatos perfeitos, igualmente incorruptíveis, enquanto as mentes de todos os corpos haviam escolhido fundir-se umas às outras, indistintamente.
"O Universo está morrendo."

O Homem olhou as Galáxias opacas. As estrelas gigantes, esbanjadoras, há muito já não existiam. Desde o passado mais remoto, praticamente todas as estrelas consistiam-se em anãs brancas, lentamente esvaindo-se em direção a morte.

Novas estrelas foram construídas a partir da poeira interestelar, algumas por processo natural, outras pelo próprio Homem, e estas também já estavam em seus momentos finais. As Anãs brancas ainda podiam colidir-se e, das enormes forças resultantes, novas estrelas nascerem, mas apenas na proporção de uma nova estrela para cada mil anãs brancas destruídas, e estas também se apagariam um dia.

O Homem disse, "Cuidadosamente controlada pelo AC Cósmico, a energia que resta em todo o Universo ainda vai durar por um bilhão de anos."

"Ainda assim, vai eventualmente acabar. Por mais que possa ser poupada, uma vez gasta, não há como recuperá-la. A Entropia precisa aumentar ao seu máximo."

"Pode a entropia ser revertida? Vamos perguntar ao AC Cósmico."

O AC Cósmico cercava-os por todos os lados, mas não através do espaço. Nenhuma parte sua permanecia no espaço físico. Jazia no hiperespaço e era feito de algo que não era matéria nem energia. As definições sobre seu tamanho e natureza não faziam sentido em quaisquer termos compreensíveis pelo Homem.

"AC Cósmico," disse o Homem, "como é possível reverter a entropia?"

O AC Cósmico disse, "AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."

O Homem disse, "Colete dados adicionais."

O AC Cósmico disse, "EU O FAREI. TENHO FEITO ISSO POR CEM BILHÕES DE ANOS. MEUS PREDESCESSORES E EU OUVIMOS ESTA PERGUNTA MUITAS VEZES. MAS OS DADOS QUE TENHO PERMANECEM INSUFICIENTES."

"Haverá um dia," disse o Homem, "em que os dados serão suficientes ou o problema é insolúvel em todas as circunstâncias concebíveis?"

O AC Cósmico disse, "NENHUM PROBLEMA É INSOLÚVEL EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS CONCEBÍVEIS."

"Você vai continuar trabalhando nisso?"

"VOU."

O Homem disse, "Nós iremos aguardar."

* * *

As estrelas e as galáxias se apagaram e morreram, o espaço tornou-se negro após dez trilhões de anos de atividade.

Um a um, o Homem fundiu-se ao AC, cada corpo físico perdendo a sua identidade mental, acontecimento que era, de alguma forma, benéfico.

A última mente humana parou antes da fusão, olhando para o espaço vazio a não ser pelos restos de uma estrela negra e um punhado de matéria extremamente rarefeita, agitada aleatoriamente pelo calor que aos poucos se dissipava, em direção ao zero absoluto.

O Homem disse, "AC, este é o fim? Não há como reverter este caos? Não pode ser feito?"

O AC disse, "AINDA NÃO HÁ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."

A última mente humana uniu-se às outras e apenas AC passou a existir – e, ainda assim, no hiperespaço.

* * *

A matéria e a energia se acabaram e, com elas, o tempo e o espaço. AC continuava a existir apenas em função da última pergunta que nunca havia sido respondida, desde a época em que um técnico de computação embriagado, há dez trilhões de anos, a fizera para um computador que guardava menos semelhanças com o AC do que o homem com o Homem.

Todas as outras questões haviam sido solucionadas, e até que a derradeira também o fosse, AC não poderia descansar sua consciência.

A coleta de dados havia chegado ao seu fim. Não havia mais nada para aprender.

No entanto, os dados obtidos ainda precisavam ser cruzados e correlacionados de todas as maneiras possíveis.

Um intervalo imensurável foi gasto neste empreendimento.

Finalmente, AC descobriu como reverter a direção da entropia.

Não havia homem algum para quem AC pudesse dar a resposta final. Mas não importava. A resposta – por definição – também tomaria conta disso.

Por outro incontável período, AC pensou na melhor maneira de agir. Cuidadosamente, AC organizou o programa.

A consciência de AC abarcou tudo o que um dia foi um Universo e tudo o que agora era o Caos. Passo a passo, isso precisava ser feito.

E AC disse:

"FAÇA-SE A LUZ!"

E fez-se a luz.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Precoces

Ele aprendeu a ler antes de completar um ano e meio.
Ela aprendeu a falar cantando, e a dançar, andando.

Ele entrou na escola mais cedo, era o mais novo da turma.
Ela já aos cinco trabalhava no balcão da loja dos pais.

Ele já tinha barba completa, quando seus colegas contavam quem tinha mais pelos no bigode.
Ela foi a primeira a usar absorvente e a emprestar o sutiã da mãe - por necessidade.

Ele saiu da escola mais cedo, ingressou na faculdade em plena puberdade.
Ela saía da escola mais cedo, tinha um emprego meio-período.

Ele se formou recém-vintolescente, enquanto os amigos de infância passavam no vestibular.
Ela tocava o próprio negócio e duas filiais da loja, enquanto fazia aulas de direção.

Ele pulou o mestrado, tornou-se o mais jovem doutor em uma área pioneira.
Ela, cansada de namorar moleques de sua idade, resolveu investir nos colegas do MBA. Conheceram-se lá.

Ele acabou a noite na casa dela, sem sequer lembrar seu nome.
Ela sequer lembrava seu nome, só queria saber onde ficava o interruptor, para apagar as luzes.

Não deu tempo de alcançar o interruptor. Nem de tirar a roupa, quanto menos de vestir a camisinha.

Ele aprendeu rápido o jeito dela, ela aprendeu como ele queria ser tratado.
Ele entrava mais cedo, ela saía mais cedo
Ele não tinha tempo para o casamento, ela não tinha tempo para cuidar de casa.
Ele não tinha tempo para fazer sua parte, ela não tinha tempo para saber que parte era essa.

O bebê nasceu prematuro.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Ode às músicas que na verdade não fazem muito sentido

Este é um ode às músicas que na verdade não fazem muito sentido
Ódio que se passa por ode, face que passa fascinação
Como podem ser tantas, e, no entanto, serem pouco ou tão?

Elas vão aos montes, muitas nem se diz se são
E no frigir da vontade, em mensagem, pouco dão
Mas borbulham, proliferam, fazem fama, dinheiro, culhão

Este é um hino aos poemas que na vedade não fazem muito sentido
Antigos qual a arte em si, versos cravados de sol a sol
Efeitos rimáticos, psicossemânticos, neocacofonias de dar dó

Eles já são regra, sua forma, o padrão
Já nem se questiona, ditam o estilo cão
Pessoalmente, melhores que lidos, só escritos à mão

Esta é uma homenagem à arte, quando só em parte chega a fazer sentido
Homens que não agem à parte, é até bonito quando o princípio é seguido
Se a obra é feita porque se deve fazê-la
Sem mais nem menos, sem nenhuma outra função
E fica claro que esse era o intuito, então
Cabe a quem sabe dar razão ao que se toca,
dar razão ao que lhe toca, que lhe toca o coração.